sexta-feira, 12 de março de 2010

Ética. Um contributo para a delimitação do seu objecto de estudo.

Resumo. Pretende-se com este trabalho dar um contributo para a delimitação do objecto de estudo da Ética. Partindo do étimo grego constata-se uma duplicidade no significado, que se mantém na tradução latina e na actualidade. Contudo, subsiste o problema da delimitação do seu objecto de estudo face a domínios como a deontologia e política.

Palavras-chave: Ética, Moral, Deontologia, Teleologia, Política.

§ 1. Etimologia e enquadramento do termo ética.

Roque Cabral[1] refere a ética como um adjectivo substantivado em cuja origem etimológica encontramos dois termos gregos: éthos – costume, uso, maneira (exterior) de proceder – e êthos – morada habitual, toca, maneira de ser, carácter. Aristóteles[2] deriva a ethiquê epistéme do primeiro termo; Heidegger[3] prefere o segundo, embora correndo o risco de reduzir a Ética à ontologia.

Esta duplicidade etimológica leva Roque Cabral a admitir “duas concepções” de ética: 1) concepção puramente descritiva de ciência de costumes; 2) concepção expressamente normativa. Esta duplicidade estará na origem de outras mais recentes tais como ético/jurídico ou moralidade/legalidade, para referir apenas termos em português. Citando o autor:

“Dado que êthos terá derivado de éthos, podemos dizer que o termo “ética” recolhe a dupla significação sugerida por ambos os termos, sublinhado a vinculação ao sujeito que o termo êthos significa”[4]

O autor chama ainda a atenção para a evolução semântica ocorrida na tradução latina do termo por Cícero que, partindo da aristotélica ethiquê epistéme, usa o termo moralis (scientia), derivado de mos, mores (costumes). Esta problemática poderá estar na base da distinção entre ética e moral.

§ 2. As duas éticas

A palavra ética procede do vocábulo ethos, que possui dois sentidos fundamentais. O primeiro e mais antigo, significava “residência”, “morada”, “lugar onde se habita”. O segundo, adoptado por toda a tradição filosófica a partir de Aristóteles, coloca a ética como “modo de ser” ou “carácter”. Xavier Zubiri precisou esta significação com as seguintes palavras:

«O vocábulo êthos tem um sentido infinitamente mais amplo daquele que damos hoje à palavra “ética”. O ético compreende, antes do mais, as disposições do homem na vida, o seu carácter, os seus costumes e, naturalmente, também o moral. Na realidade poderia traduzir-se por “modo ou forma de vida” no sentido profundo da palavra, diferentemente da simples “maneira”.»[5]

Retenhamos a palavra “carácter”. Carácter, mas não no sentido biológico de “temperamento” dado com as estruturas psicológicas, mas sim no modo de ser ou forma de vida que se vai adquirindo, apropriando, incorporando, ao longo da existência. Como aconteceu esta apropriação? A etimologia guia-nos: êthos deriva de éthos, o qual quer dizer que o carácter se adquire mediante o hábito, que o êthos não é, como o patológico (de páthos), dado por natureza, mas sim adquirido por hábito (virtude ou vício). Daqui resulta a expressão “segunda natureza”.

Acabámos de dizer que êthos se adquire mediante o hábito; mas, por sua vez, os hábitos nascem por repetição de actos iguais. Reciprocamente, os hábitos constituem o princípio intrínseco dos actos. Parece haver, pois, um círculo entre êthos-hábitos-actos. Como refere José Luis Aranguren:

«Assim se compreende como é preciso resumir as duas variantes da acepção usual de êthos, a que vê neste o “princípio” dos actos, e a que o concebe como seu resultado”.»[6]

Êthos é carácter impresso no espírito por hábito, mas também, através do hábito, é fonte. E seria esta tensão, sem contradição, que definiria o âmbito conceptual da ideia central de ética. Segundo a etimologia, o fundamental, aquele do qual deriva o próprio nome “ética”, deve ser o primeiro. Porquê, então, adoptar o segundo sentido? Talvez a etimologia latina ajude a explicar esta escolha.

§ 3. Distinção entre êthos e mores.

Os gregos dividiam a filosofia em três partes: física, ética e lógica[7]. A ética era a ciência dos costumes. Contudo, a passagem do grego para o latim trouxe mudanças. Cícero, autor romano, traduziu o adjectivo grego “ético” por “moral” (moralis), palavra construída a partir do substantivo mos, moris, que designa a maneira de nos comportarmos não segundo a lei (pois isso seria objecto da política), mas segundo os costumes. Assim, na filosofia greco-romana, Ética e Moral são sinónimos e designam a ciência dos costumes ou ciência do Bem.

Chegados aqui, torna-se evidente que há diferenças. Ainda que a moral e a ética sejam termos afins, podemos contudo distingui-los. Como refere Paul Ricouer:

«Nada há, realmente, na etimologia ou na história do uso dos termos que imponha a distinção entre ética e moral. Um dos termos vem do grego, o outro do latim e ambos reenviam à ideia de costumes (ethos, mores); no entanto, podemos encontrar um traço distintivo entre eles, consoante acentuemos o que é “considerado bom” ou o que “se impõe como obrigatório”.»[8]

Esta distinção entre ética e moral começa a ganhar novos contornos a partir do século XVIII, com o filósofo alemão Kant. Na sua obra de 1785, Fundamentação da Metafísica dos Costumes[9], este autor apresenta um verdadeiro projecto para uma ética a constituir-se.

Depois de Kant começa a distinguir-se entre ética e moral. O termo “moral” passa a denotar melhor os comportamentos, as acções práticas; o termo “ética” denota antes os princípios de toda a conduta. Neste sentido o termo “ética” passa a andar associado ao termo axiologia e, na sua maioria esmagadora, os textos de axiologia referem sempre exemplos do domínio ético. Em síntese, a ética ocupa-se dos princípios e categorias comuns a toda a moralidade. São elas especialmente: consciência moral, liberdade, responsabilidade e ainda os conceitos de Bem, dever e direito.

Importa distinguir os termos, pois moral e ética, não obstante serem tomados como sinónimos, não são a mesma coisa. Resumidamente, podemos apresentar duas formas que nos permitem estabelecer a distinção:

A. conferir à moral uma dimensão mais local e à ética uma dimensão mais universal; é por isso que enquanto a reflexão ética incide sobre princípios, já a vivência moral se ocupa sobretudo da avaliação das condutas;

B. uma segunda forma consiste em ligar a ética à persecução do viver bem, da vida boa ou da felicidade e associar a moral às noções de obrigação e dever morais pelas quais se devem pautar as condutas dos indivíduos.

§ 4. Delimitação do objecto de estudo da Ética.

A reflexão acerca da dimensão ética do agir e, em particular, acerca dos seus fundamentos, a que se dedicará o presente trabalho, exige uma clarificação e delimitação da especificidade do agir moral, bem como da linguagem e do discurso mediante os quais os seres humanos legitimam as suas acções como boas ou más, justas ou injustas, responsáveis ou irresponsáveis. Neste sentido, à reflexão filosófica sobre essa dimensão ética do agir, chamamos Ética – que importa distinguir da Moral. Apresentaremos de seguida a delimitação dos respectivos objectos de estudo.

A Moral encontra-se ligada à aplicação concreta de certas regras morais – e devemos constatar que existe uma grande diversidade de morais –, e a situações do dia-a-dia perante as quais somos obrigados a decidir. Por isso, a moral está ligada à dimensão convivencial e comunitária da vida dos homens. Ora, existindo em qualquer sociedade interdições, regras, normas, etc., a moral surge relacionada com os comportamentos dos homens relativamente às obrigações que socialmente devem cumprir no âmbito da coexistência interpessoal. A moral surge ligada à noção de obrigação, à acção em conformidade com o dever.

A Ética será a reflexão acerca dessa esfera da conduta humana a que chamamos moral. Com mais rigor, a Ética poderia ser definida como a ciência ou teoria que tem por objecto a moral, ou seja, a experiência e o comportamento dos seres humanos, considerados sob o prisma da bondade ou da maldade, da justiça ou da injustiça, do recto ou do não recto, do obrigatório ou do proibido. A Ética preocupa-se com a fundamentação racional das normas morais e, de uma forma mais vasta, com o agir humano. Citando Fernando Savater:

«Moral é o conjunto de condutas e normas que tu, eu e alguns dos que nos rodeiam costumamos aceitar como válidas; ética é a reflexão sobre o porquê de as considerarmos válidas, bem como a sua comparação com outras “morais”, assumidas por pessoas diferentes.»[10]


§ 5. Ética, Deontologia e Política.

Ao longo da história, registam-se duas posições éticas fundamentais: éticas consequencialistas e éticas intencionalistas Uma dá prioridade ao conteúdo da acção moral; a outra à forma; a primeira afirma que o valor de uma acção se mede pelo valor dos seus resultados, pelas suas consequências, pelo que se considera bom num determinado momento; a segunda defende antes o valor da intenção com que uma acção é feita, em consonância com o dever.

Os partidários das éticas consequencialistas defendem uma perspectiva teleológica: o valor de uma acção depende sobretudo do bem ou finalidade perseguidos (a felicidade, o prazer, a boa vida, o bem-estar). Assim pensa a ética consequencialista, da qual o utilitarismo de Stuart Mill é um exemplo paradigmático[11]. É uma ética material, na qual a prioridade é concedida ao conteúdo, ao que é considerado bom.

Os partidários das éticas intencionalistas defendem uma perspectiva deontológica: defendem que o valor de uma acção é determinado unicamente pelo “modo de acção” que nela se realiza e pela intenção com que foi praticada. Assim pensa Kant. É uma ética formal, na qual a prioridade é concedida à forma, ao Dever.

No final da época Moderna, começa a desenhar-se uma divergência entre filosofia anglo-saxónica, mais consequencialista, fruto do empirismo, e a filosofia continental, mais deontológica, fruto do racionalismo. A tendência continental, na linha da revolução francesa e da filosofia alemã, acentua a supremacia das éticas deontológicas. Inclusive, há uma tendência actual para relacionar ética e política. Pergunta-se: qual o objecto de estudo da ética? A citação seguinte, do filósofo Fernando Savater, poderá ajudar a clarificar:

« […] a ética preocupa-se em conseguir boas pessoas e a política ocupa-se em conseguir boas instituições; e as boas instituições distinguem-se porque conseguem funcionar bem ainda que as pessoas que as encarnam não sejam moralmente boas. Por isso, a ética não pode ser o remédio da política […]. De facto, a própria noção de “instituição” – central em qualquer consideração política e importante na área deontológica – é radicalmente alheia à ética: a vida moral do sujeito aspira a uma certa coerência unitária, mas nunca pode considerar-se “institucionalizada”.» [12]

§ 6. Em jeito de conclusão.

Se atentarmos no subtítulo do trabalho, poderemos ser tentados a interpreta-lo como uma tentativa de identificar uma objectividade para a Ética, justamente através da delimitação do seu objecto de estudo. Contudo, existe uma profunda diferença entre a ética e a ciência, pois esta descreve uma realidade que existe independentemente dos observadores.

Mas podemos falar de outro tipo de objectividade, traduzida em métodos de raciocínio e no exame das razões ou argumentos usados. Esta é a objectividade que convém à Ética. Neste sentido, poderemos dizer que a ética, enquanto disciplina filosófica, estuda a natureza do pensamento ético (metaética), os fundamentos gerais (ética normativa) e os problemas concretos da ética (ética aplicada). Por isso a ética não é discurso inútil ou dependente de deontologias ou políticas. Como refere Peter Singer:

«Se quisermos conferir sentido às nossas vidas trabalhando para uma causa, essa tem de ser […] uma “causa transcendente”, ou seja uma causa que ultrapasse os limites do nosso eu. […]. Quanto mais reflectirmos sobre a nossa dedicação a um clube de futebol, a uma empresa, a qualquer interesse sectorial, menos utilidade veremos nela. Em contraste, por muito que reflictamos, nunca veremos o compromisso com uma vida ética como trivial ou inútil»[13]

BIBLIOGRAFIA (ordem alfabética).

ARANGUREN, José Luís (1958) Ética, Madrid, Alianza Editorial, 1985.

ARISTÓTELES (325 a.C.), Ética a Nicómaco. Tradução A. J. Castro Caeiro Lisboa, Quetzal Editores, 2004.

CABRAL, Roque, “Ética” in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa, Editorial Verbo, 1990.

HEIDEGGER, Martin (1947) Carta sobre o Humanismo. Tradução de Pinharanda Gomes. Lisboa, Guimarães Editores, 1980.

KANT, Immanuel (1785) Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Tradução Paulo Quintela. Porto, Porto Editora, 1995.

MILL, John Stuart (1871) Utilitarismo. Tradução de Pedro Galvão. Porto, Porto Editora, 1995

RACHELS, James (2003), Elementos de Filosofia Moral. Tradução de F. J. Azevedo. Lisboa, Gradiva, 2004.

RICOEUR, Paul, “Éthique et Morale”, in Revista Portuguesa de Filosofia, Janeiro/Março, 1990.

SAVATER, Fernando (1991) Ética para um Jovem. Tradução de M. S. Pereira. Lisboa, Dom Quixote, 2005.

SAVATER, Fernando (1995) O Meu Dicionário Filosófico. Tradução de C. Aboim de Brito. Lisboa, Dom Quixote, 2000.

SINGER, Peter (1993) Como Havemos de Viver? Tradução de Fátima St. Aubyn. Lisboa, Dinalivro, 2005.

[1] CABRAL, R., “Ética” in Logos. Enciclopédia Luso-Brasileira de Filosofia. Lisboa, Editorial Verbo, 1990. Tomo II, p. 334.
[2] ARISTÓTELES, Ética a Nicómaco, II, cap. 1, 1103 a, 17-18. Convém lembrar a “ética das virtudes”, que pretende ser uma interpretação da ética aristotélica baseada nesta mesma obra. Para um comentário cf. RACHEL, James, Elementos de Filosofia Moral, Lisboa, Gradiva, 2004, pp. 245-268.
[3] HEIDEGGER, M., Carta sobre o Humanismo. Lisboa, Guimarães Editores, 1980, pp. 106-107 e 110-111.
[4] CABRAL, R, Ibidem, p. 335.
[5] ZUBIRI, X., Naturaleza, Historia, Dios, p. 259. Citado por José Luis Aranguren, Ética, Madrid, Alianza Editorial, 1985, I parte, cap. 2, p. 22.
[6] ARANGUREN, J. L., Ética, I parte, cap. 2, p. 22.
[7] «A “Ética” aparece junto com a “lógica” e a “Física”, pela primeira vez, na Escola de Platão.» HEIDEGGER, M. op cit, p. 106.
[8] RICOEUR, P., “Éthique et Morale”, in Revista Portuguesa de Filosofia, Janeiro/Março, 1990, p. 5.
[9] KANT, I., Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Porto, Porto Editora, 1995.
[10] SAVATER, F., Ética para um Jovem, Lisboa, Editorial Presença, 1994, p. 42.
[11] Ver MILL, J. S. Utilitarismo. Porto, Porto Editora, 1995, p. 48. Dado que entende que só as consequências de um acto determinam se este é certo ou errado, o utilitarista defende uma perspectiva consequencialista. Esta perspectiva pode ser defendida assim: um acto é permissível se, e apenas se, maximiza imparcialmente o bem; cf. GALVÃO, Pedro (s/d), “Consequencialismo” in http://galvao.no.sapo.pt/
[12] SAVATER, F., O Meu Dicionário Filosófico. Lisboa, Dom Quixote, 2000, pp. 150-151
[13] SINGER, P., Como Havemos de Viver? Lisboa, Dinalivro, pp. 379-380.

Sem comentários: