segunda-feira, 11 de abril de 2016

"É preferível sofrer o mal a fazer o mal"

“Tomei a proposição socrática: «é preferível sofrer o mal do que fazer o mal» como exemplo de uma tese filosófica que diz respeito à conduta humana e tem, por consequência, implicações políticas. A razão por que o fiz foi a de que por um lado, esta frase se tornou o início do pensamento ético ocidental e, por outro lado, que, tanto quanto eu sei, permaneceu a única proposição ética que pode ser derivada directamente da experiência especificamente filosófica. (Poder-se-ia despojar o imperativo categórico de Kant, seu único rival neste campo, dos seus elementos judaico-cristãos, que explicam a sua formação como imperativo e não como simples proposição. O princípio que lhe está subjacente é o axioma da não-contradição – o ladrão contradiz-se a si próprio porque quer guardar na sua propriedade bens que roubou – e esse axioma deve a sua validade às condições do pensamento que Sócrates foi o primeiro a descobrir.) […]

A proposição socrática: «É preferível sofrer o mal a fazer o mal» não é uma opinião mas pretende ser a verdade, e ainda que se possa duvidar que tenha tido alguma vez uma consequência política directa, é inegável o seu impacto como preceito ético sobre a conduta prática; só os mandamentos religiosos, absolutamente obrigatórios para a comunidade dos crentes, podem ter pretensões a um tão grande reconhecimento. Não estará este facto em clara contradição com a impotência geralmente admitida da verdade filosófica? E já que sabemos pelos diálogos de Platão como a tese de Sócrates era pouco convincente tanto para os seus amigos como para os seus inimigos de cada vez que tentava demonstrá-la, é necessário interrogarmo-nos sobre como poderá ela ter obtido  o seu elevado grau de validade. Manifestamente, isso ficou a dever-se a um modo bastante invulgar de persuasão; Sócrates decidiu apostar a sua vida nesta verdade, para dar o exemplo, não quando compareceu diante do tribunal ateniense, mas ao recusar-se a escapar à sentença de morte.”


Hannah Arendt, “Truth and Politics” 1967. Verdade e Politica. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1995, cap. III, pp. 32 e 37.

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