“Tomei a proposição
socrática: «é preferível sofrer o mal do que fazer o mal» como exemplo de uma
tese filosófica que diz respeito à conduta humana e tem, por consequência,
implicações políticas. A razão por que o fiz foi a de que por um lado, esta
frase se tornou o início do pensamento ético ocidental e, por outro lado, que,
tanto quanto eu sei, permaneceu a única proposição ética que pode ser derivada
directamente da experiência especificamente filosófica. (Poder-se-ia despojar o
imperativo categórico de Kant, seu único rival neste campo, dos seus elementos
judaico-cristãos, que explicam a sua formação como imperativo e não como
simples proposição. O princípio que lhe está subjacente é o axioma da
não-contradição – o ladrão contradiz-se a si próprio porque quer guardar na sua
propriedade bens que roubou – e esse axioma deve a sua validade às condições do
pensamento que Sócrates foi o primeiro a descobrir.) […]
A proposição socrática: «É preferível sofrer o mal a fazer o mal» não é uma opinião mas pretende ser a verdade, e ainda que se possa duvidar que tenha tido alguma vez uma consequência política directa, é inegável o seu impacto como preceito ético sobre a conduta prática; só os mandamentos religiosos, absolutamente obrigatórios para a comunidade dos crentes, podem ter pretensões a um tão grande reconhecimento. Não estará este facto em clara contradição com a impotência geralmente admitida da verdade filosófica? E já que sabemos pelos diálogos de Platão como a tese de Sócrates era pouco convincente tanto para os seus amigos como para os seus inimigos de cada vez que tentava demonstrá-la, é necessário interrogarmo-nos sobre como poderá ela ter obtido o seu elevado grau de validade. Manifestamente, isso ficou a dever-se a um modo bastante invulgar de persuasão; Sócrates decidiu apostar a sua vida nesta verdade, para dar o exemplo, não quando compareceu diante do tribunal ateniense, mas ao recusar-se a escapar à sentença de morte.”
Hannah Arendt,
“Truth and Politics” 1967. Verdade
e Politica. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa, Relógio D’Água
Editores, 1995, cap. III, pp. 32 e 37.
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