sábado, 28 de maio de 2016

Cântico negro

Cântico negro
José Régio

"Vem por aqui" — dizem-me alguns com os olhos doces
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom que eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui!"
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos olhos meus, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...
A minha glória é esta:
Criar desumanidades!
Não acompanhar ninguém.
— Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre à minha mãe
Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...
Se ao que busco saber nenhum de vós responde
Por que me repetis: "vem por aqui!"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...
Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.
Como, pois, sereis vós
Que me dareis impulsos, ferramentas e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...
Ide! Tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátria, tendes tetos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios...
Eu tenho a minha Loucura !
Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...
Deus e o Diabo é que guiam, mais ninguém!
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções,
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou,
É uma onda que se alevantou,
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou
Sei que não vou por aí!

Daniel Sampaio

Daniel Sampaio: “Os pais não são amigos dos filhos. São adultos e devem funcionar como tal, traçando limites”
O psiquiatra que trabalha há mais de 30 anos com adolescentes e famílias, alerta: “quando as gerações ficam muito próximas, a autoridade enfraquece”
Na última crónica que escreveu para a revista P2, do jornal Público, em Dezembro último, dizia que os pais estão mais próximos dos filhos como nunca, mas, em muitos casos, há um marcado défice de autoridade”. O que está a falhar?
Na primeira metade do século XX, os pais estavam mais distanciados dos filhos. Existia autoritarismo e, muitas vezes, castigos físicos. A relação entre pais e filhos era de uma certa distância repressiva. A partir da segunda metade do século XX, nos anos 70 e 80, houve uma aproximação das gerações. Os pais, sobretudo, os progenitores masculinos, ficaram próximos das crianças. Do ponto de vista psicológico, isso foi muito benéfico. Mas, quando as gerações ficam muito próximas, a autoridade enfraquece.
Neste momento existem muitos problemas porque os pais têm dificuldade em exercer a autoridade e a função parental. Já não podem voltar aos métodos antigos e, às vezes, são um pouco permissivos ou indulgentes, desculpando muitas coisas. Também porque estão muito centrados no trabalho ou no desemprego. É preciso ganhar novas formas de autoridade.
Como?
Através, por exemplo, de medidas que permitam conciliar melhor a actividade profissional e a vida familiar. A recente petição pública, promovida pela Ordem dos Médicos, para que as mulheres possam ter uma redução de duas horas diárias de trabalho para estarem com os filhos até aos três anos, é um bom exemplo.
O incentivo à natalidade passa por esse tipo de medidas?
Exactamente. Não se pode querer que as pessoas tenham filhos se não tiverem condições para tomarem conta deles. Os pais trabalham todo dia ou vivem ansiosos porque estão desempregados e, quando os filhos voltam da escola, essa ansiedade e as dúvidas parentais tornam-se latentes. Quando chegam à adolescência, alguns desses jovens tornam-se agressivos e os pais perdem o controlo da situação. Para que a autoridade surja de forma natural, é preciso apostar na relação entre pais e filhos nos primeiros anos de vida.
Que adolescentes estamos a criar com défice de autoridade de que fala?
Adolescentes muito omnipotentes e reivindicativos e bastante ciosos dos seus direitos e que, muitas vezes, se tornam agressivos com os pais e professores. Têm uma cultura de direitos, daquilo que lhes é devido, mas falta-lhes a cultura da responsabilidade e do respeito, que se perdeu um pouco. É preciso recuperá-la.
Há pais que se vangloriam de serem os melhores amigos dos filhos.
Esse não é o bom caminho. É preciso recuperar o fosso intergeracional, que se usou muito no século XX. Os pais não são amigos dos filhos. São adultos e devem funcionar como tal, traçando limites. Claro que pode e deve haver momentos de grande proximidade, mas é preciso perceber que um adulto tem de ter mais maturidade e mais contenção emocional e maior capacidade para evitar uma discussão. Vejo alguns pais e professores colocarem-se ao nível dos filhos e dos alunos. Entram numa discussão simétrica, em que um diz uma coisa e outro responde com outra pior. Quando isso se passa na família, a violência acaba por aparecer.
In Jornal de Leiria

quinta-feira, 21 de abril de 2016

Jorge de Sena

Nós que não somos naturais, porque
somos quem nega a natureza, não
morreremos nunca de animais a morte.
Essa morte primeva, com que acabam
os que jamais souberam que viviam,
não nos pertence desde a hora em que
de humanidade nos fizemos homens
e ao sofrimento abrimos esta carne
embebendo-a do amor que não devera
ser mais que o cio do prazer sem nome
e sem memória alguma. Nunca mais
havemos de morrer em paz e espanto
de se acabar o mundo e não nós nele.
O que nos mata é a solidão povoada.
Jorge de Sena, "Peregrinatio ad Loca Infecta", 1969

segunda-feira, 11 de abril de 2016

"É preferível sofrer o mal a fazer o mal"

“Tomei a proposição socrática: «é preferível sofrer o mal do que fazer o mal» como exemplo de uma tese filosófica que diz respeito à conduta humana e tem, por consequência, implicações políticas. A razão por que o fiz foi a de que por um lado, esta frase se tornou o início do pensamento ético ocidental e, por outro lado, que, tanto quanto eu sei, permaneceu a única proposição ética que pode ser derivada directamente da experiência especificamente filosófica. (Poder-se-ia despojar o imperativo categórico de Kant, seu único rival neste campo, dos seus elementos judaico-cristãos, que explicam a sua formação como imperativo e não como simples proposição. O princípio que lhe está subjacente é o axioma da não-contradição – o ladrão contradiz-se a si próprio porque quer guardar na sua propriedade bens que roubou – e esse axioma deve a sua validade às condições do pensamento que Sócrates foi o primeiro a descobrir.) […]

A proposição socrática: «É preferível sofrer o mal a fazer o mal» não é uma opinião mas pretende ser a verdade, e ainda que se possa duvidar que tenha tido alguma vez uma consequência política directa, é inegável o seu impacto como preceito ético sobre a conduta prática; só os mandamentos religiosos, absolutamente obrigatórios para a comunidade dos crentes, podem ter pretensões a um tão grande reconhecimento. Não estará este facto em clara contradição com a impotência geralmente admitida da verdade filosófica? E já que sabemos pelos diálogos de Platão como a tese de Sócrates era pouco convincente tanto para os seus amigos como para os seus inimigos de cada vez que tentava demonstrá-la, é necessário interrogarmo-nos sobre como poderá ela ter obtido  o seu elevado grau de validade. Manifestamente, isso ficou a dever-se a um modo bastante invulgar de persuasão; Sócrates decidiu apostar a sua vida nesta verdade, para dar o exemplo, não quando compareceu diante do tribunal ateniense, mas ao recusar-se a escapar à sentença de morte.”


Hannah Arendt, “Truth and Politics” 1967. Verdade e Politica. Tradução de Manuel Alberto. Lisboa, Relógio D’Água Editores, 1995, cap. III, pp. 32 e 37.

quinta-feira, 17 de março de 2016

O HOMEM RADICAL


“Um radical é um homem com os
Pés firmemente plantados no ar.”
I. NEWTON

O livre-arbítrio dá-nos asas para voar. A vontade transporta-nos para além do imediato. Sem a liberdade seriamos como prisioneiros na caverna de Platão. Numa palavra, entramos no domínio do abstracto, do inteligível. Como é isso possível, sendo nós corpo e sentidos?

Em primeiro lugar devemos assumir a nossa autonomia. Sapere aude! Devemos ousar pensar por nós próprios. Esta é a primeira condição para ir além do óbvio e do imediato. Aquele que não tem autonomia fica agrilhoado aos seus sentidos. Não tem as asas do livre-arbítrio.

Depois, deve assumir a sua radicalidade. O carácter radical do homem decorre do facto de este se colocar numa posição que vai à raiz, que procura fundamentos últimos da realidade. Ora essa radicalidade transporta-nos para além de uma realidade que se limita à condição de prisioneiro na caverna.

Newton, estudioso dos fenómenos celestes, soube ver mais além. E por isso teve autonomia e radicalidade. É certo que sofreu a força da gravidade quando a maçã lhe caiu na cabeça. Mas os seus pés estavam firmemente plantados no ar. Não há gravidade que corte a raiz ao pensamento.


O que está em mim nunca poderá anular a radicalidade de procurar o está acima de mim!

sábado, 12 de março de 2016

Acerca da indisciplina na Escola. Sofia Canha, Deputada.

Vou permitir-me ser politicamente incorreta. Normalmente há grandes pruridos em falar de indisciplina nas escolas e assumi-la como um verdadeiro problema com todas as consequências que daí advêm. Esta questão nunca é verdadeiramente discutida nas escolas, porque não se assume como um problema da escola, mas sim do professor.
Desviou-se a questão para a natureza psicológica do professor, em vez de se assumir como um problema da escola e da sociedade e, assim, se dar instrumentos claros, precisos e justos, de regulação. Fazer depender a gestão da indisciplina na aula unicamente das características pessoais e do perfil do professor, não só é errado como pernicioso. A principal função do professor é mediar a aprendizagem dos alunos, mediante os conteúdos programáticos que, formal ou informalmente, constam do programa e/ou do projeto educativo. E é precisamente esta função que, não raras vezes, acaba por ser secundarizada, perante situações disruptivas constantes, que desviam a atenção do professor da sua principal função.
A relação pedagógica deve assentar no respeito mútuo, tendo por base as condições para o pleno exercício das funções e papéis que cabem a cada um: ensinar/educar e aprender/educar-se. O professor ao longo de 90 minutos aciona constantemente o sistema límbico (responsável pelas emoções) e o reptiliano (instinto, segurança), devido às diversas situações e problemas que ocorrem na aula, significando que nem sempre está concentrado e focalizado naquele que deveria ser o seu conteúdo funcional. Esta intermitência causa uma grande pressão que, a longo prazo, acarreta graves prejuízos para a saúde do docente e compromete o processo de ensino-aprendizagem.
Todos aqueles chavões que, de repente, se começaram a atribuir ao professor (gestor de conflitos, gestor de emoções, promotor de afetos, entre outros) transformaram-no num super-herói, capaz de assumir uma amálgama de papéis. E a sociedade agradece, as famílias agradecem, o sistema agradece, pois, ao delegar-se neste super-herói a tarefa de fazer tudo o que é da sua responsabilidade e tudo o que não deveria ser, a sociedade, a família e o sistema “lavam as suas mãos”… E pior do que isso, responsabilizam a escola e, em última instância, os professores.
Na generalidade das salas de aula, em Portugal, gerem-se comportamentos e situações de conflito, quando sedeveriam gerir aprendizagens.Ou seja, são tantos os fatores de dispersão que a aprendizagem e o conhecimento ficam secundarizados. É aqui que as escolas privadas ganham terreno e se diferenciam (selecionando os alunos também pelos padrões de comportamento e com autonomia para definirem as regras de conduta e eventuais sanções que, na Escola Pública, seriam inaceitáveis).
Por outro lado, a cultura do prazer que se instalou na sociedade pós-moderna, influenciada pelas correntes humanistas mais fundamentalistas, fez emergir algumas teorias sobre o papel da escola, algumas excessivamente românticas (“a escola deve servir para as crianças serem felizes”, “educar para a felicidade”, entre outras), que têm contribuído para uma maior naturalização dos “maus comportamentos”. Não consta que pessoas educadas em ambientes mais disciplinadores (não confundamos com repressores) sejam pessoas piores, com menos sentido crítico, menos educadas e menos sensíveis.
A escola e os professores têm um papel fundamental no desenvolvimento dos indivíduos e na diminuição das assimetrias socioculturais. Mas é necessário que todos (escola, família e sociedade) tenham consciência do seu papel, relativamente à formação integral dos alunos, filhos, cidadãos.
Sofia Canha - Deputada do PS no Parlamento da Madeira

sábado, 5 de março de 2016

David Hume

«Os filósofos que se dão ares de superior sabedoria e confiança têm uma dura tarefa quando se encontram com pessoas de feitio inquiridor, que os expulsam de todos os cantos onde se refugiam e não podem deixar de acabar por os fazer cair em algum dilema perigoso. O melhor expediente para evitar esta confusão é sermos modestos nas nossas pretensões, e até sermos nós mesmos a apontar as dificuldades antes de elas serem apresentadas como objeções contra nós. Podemos por este meio converter nossa a própria ignorância numa espécie de mérito.»
David Hume, Tratados I: Investigação sobre o Entendimento Humano, tradução de João Paulo Monteiro, Lisboa, INCM, 2002, pág. 48.