“Neste mundo e até também fora dele, nada é
possível pensar que possa ser considerado como bom sem limitação a não ser uma
só coisa: uma boa vontade.
Discernimento, argúcia de espírito, capacidade de julgar e como quer que possam
chamar-se os demais talentos do espírito,
ou ainda coragem, decisão, constância de propósito, como qualidades do temperamento, são sem dúvida a muitos respeitos
coisas boas a desejáveis; mas também podem tornar-se extremamente más e
prejudiciais se a vontade, que haja de fazer uso destes dons naturais e cuja
constituição particular por isso se chama carácter não for boa. O mesmo
acontece com os dons da fortuna.
Poder, riqueza, honra, mesmo a saúde e todo o bem-estar e contentamento com a
sua sorte, sob o nome de felicidade dão ânimo que muitas vezes por isso mesmo
desanda em soberba, se não existir também a boa vontade que corrija a sua
influência sobre a alma e juntamente todo o princípio de agir e lhe dê
utilidade geral […].
Algumas qualidades são mesmo favoráveis a
esta boa vontade e podem facilitar muito a sua obra, mas não têm todavia nenhum
valor íntimo absoluto, pelo contrário pressupõem ainda e sempre uma boa vontade
[…]. Moderação nas emoções e paixões, autodomínio e calma reflexão são não
somente boas a muitos respeitos, mas parecem constituir até parte do valor
íntimo da pessoa; mas falta ainda muito para as podermos declarar boas sem
reserva (ainda que os antigos as louvassem incondicionalmente). Com efeito, sem
os princípios duma boa vontade, podem elas tornar-se muitíssimo más, e o
sangue-frio dum facínora não só o torna muito mais perigoso como o faz também
imediatamente mais abominável ainda a nossos olhos do que o julgaríamos sem
isso.
A boa vontade não é boa por aquilo que
promove ou realiza, pela aptidão para alcançar qualquer finalidade proposta,
mas tão-somente pelo querer, isto é em si mesma, e, considerada em si mesma,
deve ser avaliada em grau muito mais alto do que tudo o que por seu intermédio
possa ser alcançado em proveito de qualquer inclinação, ou mesmo, se se quiser,
da soma de todas as inclinações.”
I. Kant, Fundamentação da Metafísica dos Costumes,
Lisboa, Edições 70, 2000, pp. 21-23
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