“Posto que o homem não
se pode explicar unicamente a partir do cérebro do sapiens, mas que este último é o resultado de um processo de
hominização muito longo e complexo, podia surgir a tentação de regressar à
base, isto é, aos pés do primata que desceu das árvores para caminhar no solo.
O hominídeo começa por
se distinguir do chimpanzé não pelo peso do cérebro, nem provavelmente pelas
suas aptidões intelectuais, mas sim pela locomoção bípede e pela postura
vertical. Daí em diante, a hominização não deixará de caminhar sobre os pés
[…]. A postura erecta é o elemento decisivo que vai libertar a mão de todas as
obrigações locomotoras. Não nos esqueçamos de erguer o polegar neste ponto: a
oponência do polegar, aumentado a força e a precisão da preensão, vai fazer da
mão um instrumento polivalente. De repente, o bipedismo abre a possibilidade da
evolução que conduz ao sapiens: a postura erecta liberta a mão, a mão
liberta o maxilar, a verticalização e a libertação do maxilar libertam a caixa
craniana das restrições mecânicas que anteriormente pesavam sobre ela, e esta
última torna-se capaz de se alargar, em benefício de um «locatário» mais amplo.
Mas um esquema destes
(correcção anatómica → desenvolvimento tecnológico → libertação craniana) não
poderia ser casual, nem linear. Só pode ser a resultante da intervenção de
agentes de toda a ordem, que vão entrar em interacção.
De facto, este esquema
pressupõe mutações genéticas, que realizam as transformações anatómicas e o
aumento do tamanho do cérebro; uma «selecção» do bipedismo por um meio natural
adequado, que já não é a floresta mas sim a savana; um novo tipo de vida que,
fazendo deste animal simultaneamente presa e predador, desenvolve uma
dialéctica pé-mão-cérebro, aptidões cerebrais que até então não tinham sido
sistematicamente exploradas pelo chimpanzé, acarreta a utilização de armas
defensivas e ofensivas e a construção de abrigos, iniciando, portanto, o
desenvolvimento técnico no seio de uma nova praxis […].
E, a partir de então,
serão as múltiplas inter-relações, interacções, interferências, entre os
factores genéticos, ecológicos, praxistas (a caça), cerebrais, sociais e depois
culturais que vão permitir conceber o processo multidimensional da hominização,
o qual vai finalmente levar ao aparecimento do homo sapiens.
Isto já nos indica que
a hominização não poderia ser concebida unicamente como uma evolução biológica,
nem como uma evolução espiritual, nem como uma evolução sociocultural, mas sim
como uma morfogénese complexa e multidimensional resultante de interferências
genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais […].
Nós não privilegiaremos
o traço anatómico que faz que a hominização caminha somente com os pés; nem
privilegiaremos o traço psicológico que faz que a hominização caminha somente
com a cabeça; nem privilegiaremos o traço genético que faz que o hominídeo só salte
de mutante em mutante; nem privilegiaremos o traço ecológico que só faz avançar
a savana para o hominídeo e o hominídeo para a savana; nem privilegiaremos o
traço sociológico que só põe em movimento uma dinâmica social […]. Todos estes
traços são essenciais, mas são sobretudo, no que diz respeito a esta evolução,
essenciais uns aos outros.”
Edgar Morin (s/d), O Paradigma Perdido: A Natureza Humana,
Mem Martins, Publicações Europa-América, pp. 54-56.
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