quarta-feira, 31 de agosto de 2016

O Processo Multidimensional da Hominização

“Posto que o homem não se pode explicar unicamente a partir do cérebro do sapiens, mas que este último é o resultado de um processo de hominização muito longo e complexo, podia surgir a tentação de regressar à base, isto é, aos pés do primata que desceu das árvores para caminhar no solo.
O hominídeo começa por se distinguir do chimpanzé não pelo peso do cérebro, nem provavelmente pelas suas aptidões intelectuais, mas sim pela locomoção bípede e pela postura vertical. Daí em diante, a hominização não deixará de caminhar sobre os pés […]. A postura erecta é o elemento decisivo que vai libertar a mão de todas as obrigações locomotoras. Não nos esqueçamos de erguer o polegar neste ponto: a oponência do polegar, aumentado a força e a precisão da preensão, vai fazer da mão um instrumento polivalente. De repente, o bipedismo abre a possibilidade da evolução que conduz ao sapiens: a postura erecta liberta a mão, a mão liberta o maxilar, a verticalização e a libertação do maxilar libertam a caixa craniana das restrições mecânicas que anteriormente pesavam sobre ela, e esta última torna-se capaz de se alargar, em benefício de um «locatário» mais amplo.
Mas um esquema destes (correcção anatómica → desenvolvimento tecnológico → libertação craniana) não poderia ser casual, nem linear. Só pode ser a resultante da intervenção de agentes de toda a ordem, que vão entrar em interacção.
De facto, este esquema pressupõe mutações genéticas, que realizam as transformações anatómicas e o aumento do tamanho do cérebro; uma «selecção» do bipedismo por um meio natural adequado, que já não é a floresta mas sim a savana; um novo tipo de vida que, fazendo deste animal simultaneamente presa e predador, desenvolve uma dialéctica pé-mão-cérebro, aptidões cerebrais que até então não tinham sido sistematicamente exploradas pelo chimpanzé, acarreta a utilização de armas defensivas e ofensivas e a construção de abrigos, iniciando, portanto, o desenvolvimento técnico no seio de uma nova praxis […].
E, a partir de então, serão as múltiplas inter-relações, interacções, interferências, entre os factores genéticos, ecológicos, praxistas (a caça), cerebrais, sociais e depois culturais que vão permitir conceber o processo multidimensional da hominização, o qual vai finalmente levar ao aparecimento do homo sapiens.
Isto já nos indica que a hominização não poderia ser concebida unicamente como uma evolução biológica, nem como uma evolução espiritual, nem como uma evolução sociocultural, mas sim como uma morfogénese complexa e multidimensional resultante de interferências genéticas, ecológicas, cerebrais, sociais e culturais […].
Nós não privilegiaremos o traço anatómico que faz que a hominização caminha somente com os pés; nem privilegiaremos o traço psicológico que faz que a hominização caminha somente com a cabeça; nem privilegiaremos o traço genético que faz que o hominídeo só salte de mutante em mutante; nem privilegiaremos o traço ecológico que só faz avançar a savana para o hominídeo e o hominídeo para a savana; nem privilegiaremos o traço sociológico que só põe em movimento uma dinâmica social […]. Todos estes traços são essenciais, mas são sobretudo, no que diz respeito a esta evolução, essenciais uns aos outros.”

Edgar Morin (s/d), O Paradigma Perdido: A Natureza Humana, Mem Martins, Publicações Europa-América, pp. 54-56.

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